sábado, 1 de setembro de 2012

Dos pedidos de socorro que não ouvimos

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Hoje poderia ter sido um daqueles dias que não têm nada de especial  porque não são mesmo  mas como diria Drummond "...no meio do caminho tinha uma pedra..." e eu acho que tacaram ela bem no meio da minha testa. Na verdade foi um dia comum, desses que você toma um café comum, come um almoço banal e vai pra casa num ônibus qualquer. Bem, era esse ônibus que eu estava esperando quando recebi a tal pedrada.

Enquanto eu esperava o ônibus num ponto mais vazio do que ele costumava ser, passando mais frio do que costumava passar, eu devaneava enquanto ouvia música no iPod e observava carros, motos e outros ônibus passarem apressados como se estivessem atrasados para o chá com a rainha. Enquanto divagava alguém se aproximou e, sem encostar em mim, fez menção de que queria dizer alguma coisa (ou melhor, já estava dizendo). Dei um passo por puro reflexo  me afastando do interlocutor  e tirei os fones de ouvido para tentar entender o que ele dizia. Parecia pedir algo e eu, num gesto automático, fiz um sinal em negativa com a cabeça. O homem emudeceu e foi embora.

Eu continuei parada do jeito que estava e foquei minha atenção novamente nos carros, motos e ônibus que passavam. Quando coloquei os fones no ouvido novamente, demorei alguns segundos para entender o que tocava, mas depois percebi que era o final de Gente Humilde, do Chico Buarque.

"...E aí me dá uma tristeza
no meu peito
feito um despeito
de eu não ter como lutar.
E eu que não creio
peço a Deus por minha gente,
é gente humilde
que vontade de chorar."

Depois disso eu fui atingida como um raio pela última frase que o homem disse (e que eu ouvi parcialmente por culpa da falta de atenção). Foi algo como "...comida...eu sou do Maranhão... estou quase desmaiando de fome". Ele disse isso mesmo? Como que eu não dei atenção?!? Olhei para trás e vi que ele conversava com duas mulheres que tentavam chegar até o ponto onde eu estava. O examinei cuidadosamente e, mesmo estando a uma certa distância, ele aparentava estar muito cansado. Andava cambaleando e carregava uma caixa de papelão sob os ombros, mas parecia carregar muito mais. Mais do que uma caixa, parecia que ele carregava o mundo – o seu mundo  que já estava ficando pesado demais pra ele.

Com cada pessoa que abordava ele olhava para o chão, como se estivesse pedindo desculpas por dirigir a palavra e interromper um momento importante de puro nadismo. Eu o vi se afastar trôpego e, num impulso, revirei a mochila catando minha carteira e saí correndo atrás do homem. Esperei ele terminar de conversar com um outro homem, que também não lhe deu atenção e então o chamei. Eu tive involuntariamente a mesma atitude que ele e encarei o chão quando vi que ele me olhava. Quando nossos olhos se cruzaram eu notei que além de fome ele carregava uma tristeza profunda, quase um abismo. Tive vontade de dar um abraço nele, mas só conseguir dizer "desculpa... boa sorte" e pelo tom que empreguei nem ao menos sei se ele me ouviu. Dei um aperto de mão e de forma discreta entreguei uma nota, o suficiente para que ele pudesse fazer uma ou duas refeições descentes. Depois disso eu dei as costas e fui embora. Não fiquei para ouvir o agradecimento e nem queria que ninguém no ponto de ônibus tivesse ouvido o nosso curtíssimo (quase) diálogo. Fiz o caminho de volta ao meu ponto inicial de cabeça baixa, olhando para o chão  assim como ele estava anteriormente  e me senti imensamente culpada por não ter dado atenção a ele inicialmente. Hoje eu fui pra casa pedindo desculpas a Deus por todos os pedidos de socorro que eu não dei atenção. Todas as pessoas que precisavam de ajuda desesperadamente e eu, displicentemente, divagava prestando atenção em aleatoriedades.

O mais triste é pensar quantas vezes ignoramos quem está ao nosso lado gritando por ajuda. É uma pena que a música do mundo esteja tão alta que não consigamos ouvir nem quem está ao nosso lado. Uma pena...



Você não é

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Você não é o seu trabalho. Você não é o que estudou. Você não é o que lê, nem muito menos o que ouve. Acha de verdade que é o que come? Tão pouco?! Você não é um problema, nem muito menos uma solução. Você não é step, mas também não é oficial. Você não é a sua personalidade ou seus pertences. Esqueça a sua casa ou o seu carro, nada disso é você de verdade. Você não é. Porque você não é uma coisa, um sentimento, uma frase ou um contracheque. Você não é. Nem se juntar todo o sentimento de revolta, ira e raiva contra o mundo. Você não é. Um punhado de boas ações e alguma dose de altruísmo? Também não é. Você não é, você está, e estando, é transitório, nada disso é seu. Você está no seu trabalho. você está estudando alguma coisa. Você está com um problema, ou você está com a solução. Você não é nada disso, você está. Você não é.